segunda-feira, 4 de maio de 2009

"Belleville rendez-vous” de Sylvain Chomet, 2003, no encerramento oficial do 1º Encontro de Bicicletas Clássicas do Alentejo, no dia 16 de Maio

Com vozes de Béatrice Bonifassi, Lina Boudreault, Michèle Caucheteux, Jean-Claude Donda
Argumento · Sylvain Chomet
Música · Benoît Charest
Origem · França/Bélgica/
Canadá/Reino Unido 2003
Formato · 35mm, cor
Distribuição · Atalanta
Classificação · m/6


2003 - 78'
A pedalada de Madame Souza

O cão ladra e o comboio passa. Uma avó atarracada, carrapito ao alto, exibe os tímidos pêlos de um buço. Fica como um espelho da imagem que os portugueses levaram ao mundo. Só quem não notou o galo de Barcelos estampado na toalha de mesa ou o prato onde se lê "Fátima Maria" (detalhe, detalhe) ficará espantado quando, lá mais para a frente, Madame Souza ataca o piano para cantar, tcham-tcham, "Uma Casa Portuguesa".
É uma senhora portuguesa com certeza, mas Madame Souza, a deliciosa protagonista de "Belleville Rendez-Vous", primeira longa-metragem de animação de Sylvain Chomet, até nasceu francesa, como uma evolução a partir da personagem da sua anterior curta-metragem "La Vieille Dame et Les Pigeons" (1998). "Originalmente, como 'La Vieille Dame et les Pigeons' teve muito sucesso no Festival d'Annecy, o meu produtor pediu-me para fazer mais duas curtas-metragens com a mesma personagem, a velha mulher que alimentava pombos com bolos", explica Chomet ao Y, por telefone, a partir de Londres. "Era suposto ser uma trilogia que formaria uma longa-metragem, com a mesma personagem. A segunda curta deveria chamar-se 'La Vieille Dame et les Bicyclettes' e a terceira 'La Vieille Dame et les Ouaouarons' [termo usado no Canadá francófono para designar uma espécie de rãs]. Basicamente o que aconteceu foi que quando comecei a trabalhar no 'storyboard' do segundo filme apercebi-me de que tinha tantas histórias que estava em condições de fazer uma longa-metragem. Como tivemos que alterar a personagem principal da velha senhora, por questões relacionadas com direitos, surgiu a Madame Souza. Tive que mudar o desenho e fiz dela uma portuguesa." Sim, Madame Souza tem um buço, veste-se de escuro e tem o cabelo enrolado num carrapito - quem desenha assim só pode fazê-lo com conhecimento de causa. Chomet inspirou-se nalguma figura real? Ele começa por negá-lo, mas depois admite: "Quando estava em Montreal, Candá, onde vivi durante dez anos, havia um restaurante que era dirigido por portugueses chamado 'Le Roi du Plateau'. Eu costumava ir lá e tornei-me amigo dos proprietários, o Michel e a Mónica Viegas. Talvez tenha sido por isso que quis ter uma personagem portuguesa no filme. Creio que fui influenciado por eles. Na verdade, é a voz da Mónica que se ouve na canção e no monólogo inicial. Além disso, andei a ver uns livros à procura de imagens, para ter uma ideia de como a Madame Souza se vestiria, o carrapito, etc. Em todo o caso, há muitos portugueses em França, são muito identificáveis porque se vestem sempre de escuro."
Ah, o estereótipo cultural. Não se preocupem porque, para nós, o inglês de Sylvain Chomet também soa a sotaque de Pepe Le Pew. Além do mais, os "clichés" em "Belleville Rendez-Vous" também não deixam ilesos os franceses, como reconhece Chomet, "sempre a beber vinho e com longos narizes", nem os americanos. "Quando se faz uma caricatura de alguém tenta-se que seja o mais exagerada possível, caso contrário não tem piada. É preciso ir ao extremo", defende. (...)
"Belleville Rendez-Vous" é uma animação contra-corrente, que quer mostrar o desenho numa altura em que neste campo os bonecos se batem pelo maior grau de realismo possível. Não, aqui tudo está na vibração do traço feito à mão por uma equipa de animadores. Se "À Procura de Nemo" era sobre peixes que agem como humanos, a fisionomia das figuras humanas em "Belleville Rendez-Vous" têm características animalescas. "Uma personagem que foi intencionalmente inspirada num cavalo de corrida é Champion. Os ciclistas são personagens fascinantes, nunca parecem estar a disfrutar da corrida, têm sempre estampado no rosto a dureza da prova. Acho que nunca vi um ciclista com um ar feliz, nem quando é o vencedor. E é verdade que as três irmãs parecem insectos gigantescos...", diz Chomet.
As três irmãs: é preciso dizer que são um trio de velhas cantoras do "music-hall" dos anos 30, uma piscadela de olho a Betty Boop. São elas que abrem "Belleville Rendez-Vous", num delirante "show" a preto e branco que inclui ainda Josephine Baker, Django Reinhardt e Fred Astaire - vejam como o desenho dança -, para desaparecerem, de seguida, quando a emissão televisiva é interrompida. São figuras angulosas numa cidade de obesos, Belleville, que é onde o transatlântico e a história vão dar. Belleville, ou seja, Nova Iorque, uma megalópole com edifícios altos, táxis amarelos e uma Estátua da Liberdade bovina. É aí que se descobre Madame Souza como uma invulgar precursora de "street music", de música concreta, e se dá o seu encontro com as três irmãs, as "triplettes de Belleville", agora mais velhas, mas que ainda continuam a viver para a música. Fazem aquilo a que Chomet chama "jazz doméstico", uma música de persussão produzida a partir de objectos quotidianos, um jornal, grelhas de um frigorífico, um aspirador - e, agora, Madame Souza, que fez dos raios de uma roda de bicicleta o seu xilofone. (...)

Kathleen Gomes
In CARTAZ Público, 23 Mar 2004

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